O que vai acontecer com a loja física agora que o cliente vive uma jornada de compras cada vez mais digital? A discussão remete a 2016, tempos pré-pandemia, quando o conceito do New Retail chinês começou a ganhar força globalmente.
O fato é que, no atual cenário do varejo, o papel que a loja física tem desempenhado no processo de convergência tem sido cada vez mais relevante. Mas para que ela possa cumprir esse papel ampliado, o lojista precisa ter a visão das jornadas do consumidor individualmente. E, a partir desses indicadores, conseguir gerenciar os negócios não mais da perspectiva dos produtos que vende, mas dos clientes que entram na loja.
É com isso em mente que o varejo, seja em forma de pequeno negócio ou de companhia de grande porte, pode entregar valor e conquistar cada vez mais esse cliente, disse Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail Strategy, em sua palestra "Novo ambiente e momento do varejo", realizada na Feira do Empreendedor 2023 do Sebrae, na última terça-feira (17).
Ao contrário do que se pensava antes da pandemia, em uma agenda de varejo em transformação e aceleração digital, a loja física ganha relevância e valor estratégico. Os motivos são diversos, e sua primeira e principal função é se tornar um grande hub para conquistar, manter, engajar, ativar e, principalmente, capturar dados dos clientes para gerar ações de personalização e recorrência.
A Zara tem explorado bem a integração entre o físico e o digital. A multinacional acaba de lançar um app em que o cliente pode consultar o estoque da loja física mais próxima antecipadamente, e reservar o produto que pretende comprar. Assim, quando for retirar a peça, não terá mais a frustração de não encontrá-la no tamanho ou na cor desejada.
O app da Zara também permite devolver peças digitalmente, sem passar pelo checkout nem pelo RFID - ou seja, sem atrito, tornando o app útil o suficiente para o cliente usar na loja e despejar dados em suas interações.
"Hoje, quando se fala em 'loja do futuro', não falamos de algo muito diferente do ponto de vista físico, mas de um papel ampliado e estratégico sobre uma nova forma de se relacionar com os clientes."
A loja também pode funcionar como hub logístico dentro do conceito last mile (ou última milha), que na pandemia foi amplamente utilizado para entregar produtos cada vez mais rápido para o cliente.
Pode explorar dados e o conhecimento acumulado sobre o cliente produzindo conteúdos como alavancas de monetização e de geração de negócios, como os cada vez mais populares live-commerces.
E ainda, como um hub de serviços e soluções pós-venda e de omnicanalidade, onde gravita e ancora a jornada do consumidor, independentemente de onde ele vai transacionar e completar a compra.
Como exemplo, Serrentino citou o Walmart, que vem ganhando a guerra digital de venda de alimentos contra a Amazon nos Estados Unidos porque usa suas lojas físicas como hubs logísticos da last mile muito perto do cliente. A rede consegue um nível e uma qualidade de serviços sustentável em larga escala, que uma empresa baseada só em Centro de Distribuição e plataforma não consegue.
"Essa é a grande virada de chave que o varejo tem que fazer para tirar proveito dessa transformação digital: colocar o cliente no centro", destaca.
E o que é "colocar o cliente no Centro?". É simples, segundo Serrentino: após a profunda e forçosa transformação provocada nos hábitos dos consumidores e na configuração dos negócios há três anos, não adianta mais olhar se a loja vendeu mais em relação ao ano anterior ou antes da pandemia.
Também não adianta só pensar em margem de lucro, em taxa média de conversão ou vendas por metro quadrado. A ideia é saber quem são os "clientes" mais lucrativos, e não os "produtos" mais lucrativos, disse o especialista e conselheiro de grandes marcas, com 35 anos de experiência em varejo.
Se a loja não souber se está conquistando mais clientes novos ou perdendo os já existentes, ou seja, se não tem base para escalar personalização e extrair mais valor dos negócios, não tem como se tornar o tal hub que atende a diferentes momentos e demandas da jornada desse consumidor.
Ele explica que nem sempre os clientes buscam a mesma coisa, então é preciso criar uma loja flexível - ou "várias lojas em uma" -, que entende quando o cliente precisa só retirar um produto on-line ou se quer experiência, aconselhamento ou serviços. E interpretar as jornadas de forma adequada no mesmo espaço físico passa pelo uso da tecnologia e capacidade de decifrá-las junto com a equipe.
Com essas soluções, dá para definir ponto de venda, sortimento, gerenciar estoques, abastecimento e reposição de mercadorias, logística, gerenciar preços e, claro, criar personalizações promocionais.
"E isso vale para empresas de qualquer porte, já que há plataformas de inteligência artificial abertas e disponíveis para todos, assim como centenas de startups provendo soluções para resolver qualquer tipo de 'dor' mal resolvida do cliente que o lojista talvez ainda não saiba endereçar", reforçou.
OPORTUNIDADES, NÃO AMEAÇAS
No legado da digitalização e mudança de hábitos que a pandemia acelerou, o papel da loja física agora se consolida. Dos pequenos negócios a gigantes como a C&A, muitos passaram a vender pelo Whatsapp e usar a loja como estoque ou ponto de entrega para continuar na briga.
A C&A, que até então trabalhava no modelo de "autosserviço de moda", fez a loja chegar até o cliente com pequenas células de vendedores que passaram a atender pelo Whats de forma experimental.
Hoje, há mais de 1,1 mil pessoas e uma célula por loja (são mais de 330 no país), integralmente dedicadas a atender clientes pelo Whatsapp, segundo Alberto Serrentino, que foi um dos responsáveis por estruturar a novidade na época - algo que jamais teria acontecido sem a pressão da pandemia.
"A mudança transformou a companhia: há meses em que representa entre 60% e 70% das vendas digitais, e pelo menos 20% do faturamento total da C&A", disse, citando ainda o "Chama no Zap", das Casas Bahia, que também se consolidou como um dos principais canais de venda da varejista.
O peso dessa aceleração digital, que fez crescer 76% o total de consumidores on-line entre 2019 e 2022, também fez explodir no Brasil o comércio cross border, que cresceu inacreditáveis 289% no período, segundo levantamento da Varese Retail, movimentando R$ 50 bilhões em compras.
Se de um lado a compra em plataformas internacionais como Alibaba, Shopee, Shein e a Amazon angustia o varejo por falta de tratamento isonômico, de outro abre uma gigantesca janela de oportunidades para empresas brasileiras explorarem a venda para o mundo inteiro, destacou.
"Além do alcance a grandes mercados como a Ásia ser brutal, essas plataformas têm infraestrutura logística, serviços e pós-venda que hoje são subaproveitados pelas empresas brasileiras."
Esse fenômeno dos marketplaces também foi outro que a pandemia catapultou, e ganhou muita tração no Brasil pelo domínio das grandes plataformas, que concentram um grande número de vendedores (ou sellers). Em 2022, eles geraram R$ 250 bilhões em vendas, sendo 80% nas cinco maiores.
Desse total, 50% de toda a base que compra digitalmente, compra do Mercado Livre. E isso pode ser enxergado como uma ameaça ou uma oportunidade, destacou Serrentino. Ele lembra que, no total, são 108 milhões de consumidores comprando on-line no Brasil - o que mostra que "o cliente está lá."
"Como um pequeno negócio, localizado, teria acesso e possibilidade de atingir esses 50 milhões de consumidores se não pudesse se servir da infraestrutura, logística, segurança, soluções de crédito e pós-venda dessas plataformas?", questionou, alertando porém que, prosperar dentro desse ambiente não é tão simples, pois implica custo elevado de captação de clientes e taxas de serviço.
Mas não é uma escolha - e daí a importância de enxergar não como ameaça, mas como oportunidade, segundo o especialista, e investir dentro das possibilidades para a empresa continuar sustentável.
"Não usar o marketplace como estratégia de relacionamento e de negócios é não estar onde o cliente busca trilhar sua jornada de compras, além de respostas para suas demandas."
E, ainda, há o pix: se há 10, 15 anos a China viveu profundamente a transformação do varejo de crédito, serviços financeiros, plataformas de ecossistemas e carteiras digitais como a WePay, todas se deram em uma velocidade inferior à penetração do meio de pagamento instantâneo no Brasil.
Hoje, segundo Serrentino, há mais usuários de pix no Brasil (mais de 130 milhões no 2º tri de 2023), do que de eleitores que votaram na última eleição. "Facilita a vida de quem compra e de quem vende, inclui não-bancarizados no mercado digital, e também microempreendedores e MEIs que não tinham condições de acessar outros meios de pagamento e agora conseguem por causa do pix."
TRANSFORMAÇÃO INVISÍVEL
O varejo de hoje não vai mais ser como era antes da pandemia. Hoje, com um cliente mais maduro digitalmente e outro ambiente econômico, há uma mudança gradual de mentalidade das empresas, que antes buscavam um crescimento forçado e acelerado baseado na diversificação nos canais de vendas.
"Em um ambiente de juro baixo, liquidez alta e crédito abundante, elas usavam essa estratégia mesmo que não fosse muito favorável", lembra Serrentino. "Elas pensavam: se eu ganhar massa crítica, muitos clientes, o negócio digital vai ganhar musculatura lá na frente", explicou Serrentino. "Mas agora, com o ambiente de juros explodindo em 14%, 15%, 16%, essa conta não fecha mais."
Ele cita o desempenho do e-commerce, que cresceu menos que o varejo em 2022, e teve uma pequena queda na penetração digital no primeiro trimestre deste ano. A primeira interpretação que vem à mente é: "o cliente voltou para a loja física porque a explosão digital perdeu força." Mas não é bem assim.
O especialista destacou que houve um desequilíbrio entre oferta e demanda, porque acabou o apelo das promoções de 10% sem juros, do frete grátis ilimitado, das campanhas promocionais agressivas e dos diferenciais de preço entre as vendas on e off-line.
"As pessoas voltaram a ser mais racionais para equilibrar suas jornadas de compra, e o foco hoje não é mais de crescimento forçado, mas de venda digital com lucro, com margem, buscando crescer trazendo clientes que depois voltam, e não os que compram uma vez só pelo preço baixo."
Os chineses, como o Alibaba, começaram a olhar bem antes para esse quesito, segundo Serrentino, mas hoje a agenda de transformação digital do varejo saiu das interações com o cliente por meio das funcionalidades da loja on-line ou física, para olhar mais para dentro do negócio, vivendo um ciclo de "transformação invisível". Ela não é tão perceptível por parte dos clientes, mas vai tornar o negócio tão eficiente e assertivo que ele vai perceber as melhoras, mas sem saber de onde vieram.
Como, por exemplo, usando a convergência entre o que é conteúdo, mídia, entretenimento e varejo, e transformando lojas físicas em verdadeiros estúdios de transmissão ao vivo para ativar clientes - caso do já citado live commerce, que apesar de ainda incipiente no Brasil, ganhou força na pandemia e chega a representar 25% de todo o faturamento do varejo e do e-commerce na China.
Isso engloba também as plataformas transacionais no Brasil, ainda muito limitadas, como o Tik Tok, mas que têm mais de 100 milhões de usuários ativos - quase o equivalente à população que compra on-line por aqui (108 milhões) -, que passam cerca de 80 minutos por dia se entretendo por lá.
Citando a China e seu ByteDance, e os Estados Unidos com o próprio Tik Tok, Serrentino lembra que nesses mercados esses apps têm um botão nos vídeos curtos que sutilmente joga o consumidor para um carrinho para que ele compre, se quiser, o que está sendo demonstrado ou apresentado.
No Brasil, deve chegar em pouco tempo, permitindo modificar uma plataforma de conteúdo em uma plataforma de venda para qualquer perfil de influenciador ou varejista, disse. "Isso muda a jornada, pois a necessidade por um produto é despertada pelo entretenimento."